Antes que meu último post faça aniversário, e aproveitando que tenho um texto pronto que escrevi para o Relato de Experiência da Assembléia do Yonomotokai, realizada em Outubro de 2011, vou postá-lo aqui na íntegra.
Não é exatamente um texto para ser lido, pois se trata de um plano de palestra, mas se for esperar até eu editar direitinho vai demorar mais alguns meses, portanto vou postá-lo assim mesmo. Boa leitura!!
Meu nome é Akio Matunobu, tenho 30 anos, e sou sucessor da Igreja Marília. No início do ano, passei 5 meses no Amapá, na capital Macapá, fazendo um trabalho de missionamento solitário, atividade da Associação dos Moços voltada às comemorações dos 60 anos de Fundação do Dendotyo. Fui convidado a relatar aqui um pouco das experiências vividas durante esse período.
Fiquei bastante receoso em relação a o que vou contar aqui, já que todos os anos ouvimos histórias emocionantes de dedicação, superação e fé. Até pensei em dramatizar um pouco a minha história pra passar um pouco mais de emoção. Mas deixaria de ser a minha história. Minha história não tem drama, não tem sofrimento. Algumas pequenas dificuldades, mas muita alegria e gratidão.
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O missionamento começou com a Caravana de missionamento com mais dois integrantes do Seinenkai, o Tiago e o Toshio. Assim que chegamos ao aeroporto de Macapá, fomos recepcionados por uma moça. Ela se aproximou de nós e disse: Oi Toshio! Oi Tiago! Akio, que saudade! Os dois olharam para mim com uma cara de espanto e desconfiança, dizendo: O que está acontecendo? Que história é essa??
Bem, a minha divulgação no Amapá já tinha começado 2 meses antes do embarque, através da internet. Talvez por insegurança diante do que poderia encontrar lá, comecei a fazer contatos nas redes sociais, explicando a razão de estar indo pra lá, e a buscar informações sobre a cidade. Essa moça que apareceu no aeroporto, se chama Géssica. Ela foi um dos pilares da minha divulgação no Amapá, e inclusive veio ao Dendotyo em Junho, nos 60 anos de Fundação. Havia outro rapaz com quem havia combinado de encontrar no aeroporto, mas ele não apareceu. E mais alguns outros tantos amigos que fiz através da internet, cheguei a conhecer alguns pessoalmente, mas só essa Géssica mesmo seguiu freqüentando a casa missionária. Pode parecer pouco, mas se contarmos quantas casas visitamos quando saímos para divulgação, e quantos desses passam a seguir o nosso ensinamento, creio que não haja tanta diferença assim.
Os dias de caravana foram bastante animados. O Toshio como uma boa dona de casa, cozinhando, lavando e limpando pra nós. Eu, como um pai pão duro, regulando as finanças, e o Tiago, como um filho adolescente rebelde. Andávamos o dia todo debaixo do sol de Macapá, batendo de casa em casa e ministrando Osazuke. À noite, ocasionalmente, fazíamos o Nioigake noturno. Alguns chamam de Happy Hour, outros de balada... Mas o nosso era Nioigake! Convidávamos os jovens que conhecíamos na divulgação durante o dia para sair à noite, tomar alguma coisa. E nessas conversas informais, conseguíamos passar o ensinamento, talvez de forma até mais apropriada que durante as visitas nas casas. A razão verdadeira deste ensinamento, que não é converter as pessoas ou curar as enfermidades. Mas de aprender, de desenvolver no dia-a-dia uma conduta, uma forma de viver que corresponda à intenção do Parens.
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A caravana acabou, dando início à minha caminhada solitária. O ritual diário praticamente não mudou em relação ao período da caravana. Fazia as mesmas coisas. Mas a sensação era completamente diferente a cada atividade. Talvez, pela primeira vez na vida, tenha entendido o significado da palavra solitário. Andar o dia todo debaixo daquele sol, sendo humilhado, ridicularizado, insultado, retribuindo tudo com um sorriso, nada disso me afetaria, se quando chegasse em casa tivesse alguém que me recebesse com um sorriso, dizendo bom trabalho! Que reconhecesse meu esforço. Ou que simplesmente compreendesse a razão de eu estar fazendo aquilo.
Foi então que me lembrei da vida modelo de Oyassama. Ela passou mais de 20 dos 50 anos de vida modelo nessas circunstâncias, até surgir o primeiro seguidor. E ela tinha salvo muitas pessoas, que recebiam a graça e não apareciam mais. Eu não tinha salvo ninguém. Pensando nisso, eu não poderia desistir em duas semanas. Isso feriria profundamente o meu orgulho. O que eu contaria aos meus filhos?
Dessa forma, mudei o meu sentimento de medo para o desejo de querer ser cada vez mais ridicularizado e insultado. Quanto mais debochassem de mim, melhor. O importante, naquele momento, era chamar atenção! Muita atenção. Queria virar motivo de fofoca na cidade. Que tem um japonês louco fazendo coisas estranhas. Sei lá. Qualquer coisa que fizessem as pessoas me notar.
Não era algo muito difícil. Só o fato de eu ter traços orientais já chamava muita atenção. Mas isso não bastava. Andando com a camisa pólo do seinenkai, poderia ser qualquer coisa, e só saberiam as pessoas com quem eu conversasse. E isso era muito pouco. Passei a andar todo dia de Happi. Andar naquele calor infernal, o sol ardente, com um kimono preto de manga comprida, escorrendo de suor e ainda sorrindo. O louco estava pronto. Mas ainda era só um louco. Então comecei a me deslocar sempre fazendo Kamina-nagashi. Essa foi a parte mais difícil. Já tinha feito em varias oportunidades, em grupos grandes, grupos pequenos. Mas sozinho era a primeira vez.
Antes de sair de casa, respiro fundo. Faço uma reverência bem longa pra preparar o espírito. Abro a porta, coloco um pé pra fora de casa... Ah, deixa eu fumar um cigarro antes de sair. Coloco a bolsa na cadeira, tiro o happi, sento e acendo um cigarro. Fumo o mais devagar possível. Termino. Levanto, coloco o happi, e me sento de novo. Quase uma hora mais tarde do que saía de costume, enfim, saio de casa. Um hyoshigi em cada mão. Vou andando... andando... andando... quase um quarteirão depois.... levanto o hyoshigi.. abro os braços e... dou uma espriguiçada e continuo andando... Acho que andei 4 ou 5 quarteirões até conseguir começar a cantar.
Quando fazemos Kamina-Nagashi em grupo, somos apenas um grupo estranho, com costumes diferentes. Mas sozinho... Um japonês de kimono preto, batendo um pauzinho e cantando uma música estranha... é Louco!!
No fundo era exatamente o que eu queria. Chamar a atenção, mesmo sendo taxado de louco.
Falando em chamar a atenção, certo dia, uma moça me parou na rua e me disse: Estava esperando o senhor! É claro que eu me assustei. Senhor? Eu? Mas eu sou tão novo... Ela já tinha o panfleto da Tenrikyo na mão. Disse que ganhara de um amigo na faculdade. E que sabia que eu passava todos os dias naquele local. Na verdade, o interesse dela havia surgido através da novela das 7. E procurando informações entre os amigos, tinha conseguido o panfleto, e também a informação de que havia alguém na cidade, e onde eu costumava passar. Estava dando certo. As pessoas estavam comentando. E a novela, surgiu no momento certo. Pena que as cenas da Tenrikyo pararam de ser exibidas.
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Ser notado é bom, mas desde que cultivemos coisas boas no dia-a-dia. Tinha um garoto que tinha problema nas pernas, e não andava. Durante algum tempo freqüentei essa casa, e ministrava osazuke todos os dias. Como eu ministrava em frente à casa, na calçada, todos que passavam ficavam olhando. Um pouco antes de voltar pra cá ele já estava andando sozinho, ainda que com alguma dificuldade. Certo dia, voltando dessa casa, um grupo me parou na rua. Eles começaram a falar algo sobre massagem, e eu não estava entendendo nada. Foi então que um deles me explicou. “Aquele garoto, que você visita todos os dias, ele não anda faz quase 2 anos. Procurou tudo que é tratamento e nada funcionava. E no pouco tempo que você faz essa massagem aí, o menino já ta andando!!”
Sem saber, eu já era conhecido por aquele grupo, talvez por mais outros tantos, como alguém que faz uma massagem milagrosa. Assim, tive a oportunidade de explicar detalhadamente sobre o ensinamento. É possível que, se tivesse abordado eles dizendo que era de uma religião, não tivessem dado tanta atenção, como ocorre na maioria dos casos. Nesse caso, eles não sabiam do que se tratava, mas sabiam que era alguma coisa boa, que funcionava.
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Em casa, procurava ser o mais natural possível, agindo como uma pessoa normal. Como era uma kitnete, os espaços eram comunitários, e o contato inevitável. E como tinha muitos estudantes, sempre formava aquela rodinha à noite, em frente ao meu apartamento. Eu procurava sempre me misturar, falando besteira e bagunçando até tarde. É o tal do Nioigake noturno. Quando ficava sabendo que alguém estava com alguma dificuldade, me prontificava a ajudar, e se fosse enfermidade, a ministrar osazuke. Chegou um ponto que eles me procuravam, batiam na minha porta de madrugada pedindo pra ministrar osazuke. A confiança era tanta, que, certo dia, um dos vizinhos veio me chamar, dizendo que a esposa estava passando mal. Quando fui entrar no quarto, a esposa, jovem, estava deitada nua, no chão. Eu dei um passo pra trás e ele me empurrou pra dentro, mandando entrar e ministrar logo o osazuke. Não se deu nem o trabalho de cobri-la, e voltou pra sala pra cuidar do filho menor, me deixando com a esposa, que por sinal era muito bonita... É lógico que eu não reparei...
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O ponto máximo do missionamento foi sem dúvida a visita do Primaz em Março. Quando fiquei sabendo que ele viria, fiquei muito feliz, mas ao mesmo tempo, muito preocupado. Quase desesperado. Acho que fiquei uma semana sem dormir. Estava lá há 2 meses, e não tinha nenhuma estrutura pra recebê-lo. Além disso, não sabia se coseguiria reunir pessoas, já que os contatos ainda eram bem superficiais. Mas comecei a perceber que minhas preocupações eram em vão, e que eu estava completamente equivocado em relação à visita do Primaz. Já nessa semana, coisas incríveis começaram a acontecer, graças inesperadas, encontros inexplicáveis, pessoas que nunca atendiam começaram a me receber, pessoas que tinham se afastado a me procurar.
Uma das minhas preocupações era o que eu ia servir pra ele. Eu tinha um fogãozinho de acampamento, uma panelinha pequena, e uma frigideira daquelas que cabe um ovo. Não tinha geladeira nem microondas. E se eu fosse cozinhar, teria que deixá-lo largado durante esse tempo. Ou pediria pra ele me ajudar? “Ow, corta essa cenoura pra mim! Onegaishimasu.” Não dá, né. A opção era comer fora. Mas lá perto só havia uma lanchonete meio suspeita e alguns botecos. Obviamente não tinha carro pra levá-lo até o centro. Já a uns 2 dias da visita, eu estava rodando a vizinhança para pedir cadeiras emprestadas, para poder acomodar as pessoas na palestra. Foi então que uma das vizinhas, muito empolgada, disse: “Ai, vai vir um japonês aí? Como que ele é? Será que posso servir um almoço pra ele?” “FECHADO!!” Não vacilei, concordei na hora! Dessa forma, o almoço já estava resolvido. Faltava o jantar. Acho que foi no mesmo dia, eu estava passando pelas casas pra lembrar da data da palestra, quando uma senhora, a mãe do menino que não andava, perguntou: “Ei, será que eu posso levar uns salgadinhos pra a gente comer depois da palestra?” Eu me fiz de difícil. “Olha Raygiane.. você sabe que o motivo dessa reunião não é pra fazer festa, vamos receber as palavras de um grande pai espiritual.... ACEITO!! Obrigado! Obrigado! Obrigado!” E foi assim um após o outro. Um oferecendo bebida, outro oferecendo doces, como se tivessem combinado. Mas nenhum deles se conhecia.
E no dia da visita, mesmo debaixo de um céu instável, conseguimos reunir 25 pessoas. E o Primaz ainda ministrou 17 Osazukes nesse dia.
Quando recebemos a visita de um Parens espiritual, como Primaz, o condutor da Igreja-Mor, ou o Shimbashira, estamos recebendo na verdade, a razão do Parens. Não é questão de o que vamos mostrar, o que conseguiremos proporcionar à ele. A presença dele em si vai fazer com que as coisas aconteçam, vai gerar frutos. Nós é que estamos sendo presenteados. É claro que devemos dedicar todo o nosso esforço pra recebê-lo, mas acima de tudo, ter muita gratidão, e preparar o recipiente espiritual para poder receber toda a graça que essa visita estará trazendo.
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Após essa visita do Primaz, como sugerido por ele mesmo, passamos a fazer reuniões mensais no dia 25, em reverência à Cerimônia Mensal de Ojiba. Em Maio, na manhã do dia que seria realizada a última reunião, estava passando nas casas pra confirmar a presença naquela noite.
Tinha uma mulher chamada Carlessandra, e ela estava vindo todos os meses. Só que nesse dia ela não estava em casa. Ela morava no interior do Amapá, e normalmente, no dia anterior à reunião ela já estaria na casa que fica em Macapá. Então liguei pra ela, e perguntei se ainda não havia chegado. Ela respondeu num tom frio e grosso: “Não Akio, não vou esse mês.” Achei muito estranho, mas como tinha outras casas pra passar, e preparativos pra fazer, disse que estava tudo bem, que não se preocupasse, e desliguei.
À noite, terminando a reunião, após todos terem ido embora, peguei um cartão telefônico e fui ligar pra ela. Não atendia. Depois de quase meia hora tentando, enfim, ela atendeu: “Oi Akio..” Num tom sereno, já não mais grosseiro, talvez cansado, quase sem vida. “Carlessandra! Fala pra mim! Você não ta bem, o que ta acontecendo? Fala pra mim... Por favor...” Após alguns segundos de silêncio ela começa a chorar. “Akio... o meu filho... o Carlito... ele ta na UTI, inconsciente... ta cada vez mais fraco, e os médicos não sabem o que fazer... A última coisa que ele me disse, ontem, quando ainda conseguia falar, foi: mãe... eu não vou mais estar aqui pra te dar trabalho né.. Ele já não comia a alguns dias, e desde ontem está inconsciente”
Eu fiquei chocado. O Carlito eu conhecia bem, brincava muito com ele e seus 4 irmãos. Até tínhamos feito Otsutome na casa deles, com toda a família. A minha vontade era ir correndo pra lá, mas eu não tinha dinheiro, e já não havia ônibus àquela hora. Respirei fundo. Pensei um pouco e disse: “Carlessandra... você sabe o quanto eu gosto do Carlito né?” “Eu sei..” “Então me escuta. Pode parecer que estou sendo frio, mas é por querer o bem dele.” “Fala Akio..” “Isso é um presente de Deus. É uma oportunidade incrível de você crescer.” “Eu sei Akio. Mas o que eu faço?” “Você acredita no meu Deus? Confia na minha reza?” “Sim Akio..” “Então reza comigo essa noite. Não posso estar aí, mas vou rezar daqui, você junta as mãos aí e reza comigo.” “Mas eu to rezando o dia inteiro!!” “Mas agora vou estar junto. E não adianta só rezar. Faça uma determinação espiritual. Eu também farei.” “Entendi”. “Tem alguma coisa em mente?” “sim, mas...” “ah, então ta bom... pq se não tivesse... ah deixa pra lá” “Fala Akio” “Determina que vc vai lá pra Sede em Bauru. Eu sei que agora não dá, sei de tudo que vc ta passando. Pode ser mais pra frente, determina o espírito que um dia vc vai lá.” “Sim Akio! E eu não vou sozinha! Eu vou com o Carlito!” “É isso aí. Ele vai ficar bem!” Combinamos um horário, pra rezarmos juntos. Eu já dançava os 12 hinos todas as noites pelos enfermos a quem eu ministrava osazuke, mas naquela noite, além desse dancei novamente, especialmente pro Carlito.
Confesso que nunca tinha sentido a presença de Deus tão forte. Eu dançava com força, mas ao mesmo tempo parecia que eu estava fora de mim, que o meu corpo se movia sozinho. Minha voz ecoava por fora, como se não fosse eu que estivesse cantando. Eu suava, sentia frio, me arrepiava.
Terminei. Eu não tinha mais créditos pra ligar pra ela. Foi só no outro dia que consegui arrumar uns trocados pra comprar um cartão telefônico. Ela atendeu: “Ooi Akio..” Era uma voz cansada, mas tranqüila. “E... ele?” “Ah, vc não vai acreditar! Ele acordou pedindo comida, fazia dias que ele não comia!! De manhã ele deu uma volta no jardim do hospital, e à tarde já recebeu alta!! Estamos em casa agora!!”
Ela me contou mais tarde, que naquela noite, no horário combinado dos 12 hinos, ela tinha sentido as mesmas sensações que eu, de frio, calor, arrepio inexplicável, a presença de Deus. E que às vezes dava a impressão que eu estava do lado dela. E do outro lado, eu sentia que não estava no meu corpo.
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Foram apenas 5 meses de missionamento. Um tempo muito curto pra estabelecer algo concreto, mas o suficiente pra adquirir um grande aprendizado. Cada momento, cada erro, cada descoberta. Cada lágrima, cada sorriso, cada abraço, fazem parte do que me faz cada vez mais convicto do caminho ensinado por Oyassama.
Gostaria de agradecer a todos pela oportunidade que tive, pois é graças à colaboração dos senhores que de alguma forma contribuem para o Seinenkai do Brasil, seja com doações, participando das atividades, ou comprando produtos no baiten, que temos condições de realizar essas atividades missionárias. Espero que cada vez mais jovens tenham a oportunidade de passar por essa incrível experiência.
Muito obrigado.